Thursday, June 07, 2007

Isso de vida própria...

Todo escritor (que se diz) costuma defender a tese de que em seu processo criativo, os personagens (criados por ele,obviamente) têm vida própria. Ou seja, eles (os personagens) é que comandam as mãos do escritor (que se diz).

Eu, como uma escritora (que me digo) também defendi essa tese por milênios. Mas estou pensando seriamente em mudar esse quadro. Não acho nada saudável um ser – criado – dominar o seu criador.

E também não acho nada confortável.

Onde já se viu, um personagem, nem bem saído das primeiras letrinhas, tomar as rédeas de sua existência e passar a infernizar a vida do escritor com a lei do livre arbítrio?

Comigo, inclusive, já aconteceu (e vive acontecendo) de eu mudar completamente o rumo de um texto ou de um personagem, sem nem eu mesma conseguir entender como isso se deu. Penso em escrever sobre as flores da estação e sai um texto sobre a bolsa que vi na vitrine. Em crise na bolsa e surge Chiclete com Banana. Em comercial de perfume e aparece crise no governo.

É... Não sei, só sei que foi assim...


Outro dia presenciei um desses embates. Um colega, companheiro de luta nessa arte de espancar teclados, às voltas com seu personagem. Este se recusava a fazer parte de uma história recém concebida.

O escritor (que se diz), empolgadíssimo, ávido por mudanças em todos os planos (de governo, de fuga, de tarifas zero...), tentava convencer seu personagem de que aquela não seria uma história qualquer. Aquela seria A HISTÓRIA – a que mudaria e resolveria todos os problemas da humanidade desde que o primeiro olhar de Adão deparou-se com a maçã de Eva (ou o olhar de Eva deparou-se com... enfim...).

Sim, o mundo seria dividido entre o antes e o depois de A HISTÓRIA.

Mas o embate prosseguia.

O escritor, empolgado! O personagem, estagnado. O escritor, ansioso. O personagem, imóvel. O escritor, agoniado. O personagem, impassível. O escritor, irritado. O personagem? Tsc. Quase um burro (marido da mula) empacado na beira de uma estrada! E esse foi o erro do escritor. Não deveria ter perdido o controle.
Essa frase comparativa dita a plenos pulmões mexeu deveras com os brios do personagem. Este, do nada, assumiu seu lado revolucionário e partiu pra guerrilha. Endureceu-se de verdade. Seu coração... nem quis saber do "sien perder la ternura" .

E passou a acusar o seu criador de abuso de poder, de invasão de privacidade, de desrespeito à liberdade de expressão, de tortura... a esfregar-lhe na cara que sabia muito bem os reais motivos para aquelas atitudes...

Sim. O personagem, ainda no processo embrional-mental do autor, presenciara tudo. O dia péssimo, a vontade que o escritor tivera (ao meio da tarde) de esganar meio mundo, de pedir demissão, de abandonar o lar, a família e... de fugir pro Nepal.

E assim, sem dó nem piedade, a criatura expunha todas as "podres e reais" intenções do pobre escritor.

E ainda dava-lhe de dedos!

Comigo não, chèrie - dizia! Nada de me usar para afogar suas mágoas ou tentar chegar ao topo de uma escada que não foi galgada (!) pela sua pessoa em anos de existência. Não admitirei ser usurpado por suas mãos (e pensamentos) egoístas!! E meu livre arbítrio, onde fica? Cadê os direitos humanos que não são respeitados nem na ficção? Cadê a Academia de Letras???? O Senado? O sindicato? A CUT? ... Enfim, cadê todo mundo? Olha que eu vou aos jornais, hein? E eu mesmo me publico! Aí quero ver a quem você irá explorar!!!

E assim seguia aquele bla bla bla sem fim...

O coitado do meu amigo, com uma mão na cabeça, a outra nas teclas de um computador adquirido na era jurássica, não sabia o que fazer.

Mas diante de tanto palavrório gritado bem fundo em sua mente, não havia outra alternativa a não ser libertar aquele protótipo de Che Guevara . E resolveu dar fim ao suplício. Libertou a criatura. E esta saiu por aí, livre, leve, solta e saltitante... ...

Quanto às idéias que ele tinha em mente, aquelas que resultariam em A HISTÓRIA... bom, estas foram por água abaixo! Sentindo-se um verdadeiro incompetente, recolheu-se à sua insignificância...

A vida própria daquele personagem acabara com a vida própria do escritor...

Adeus inspiração.

Muito triste isso.

(Adriana Luz – 06 de junho de 2007)

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